Professor Doutor Jorge Morais Carvalho
Quarentena e serviços públicos essenciais: quem paga a ‘fatura’?
Em matéria contratual, vigora o princípio pacta sunt servanda, que pode ser traduzido livremente no sentido de que os contratos devem ser cumpridos. Esta é a regra também nos contratos relativos a serviços públicos essenciais, como a energia elétrica, o gás natural, a água ou as comunicações eletrónicas. Assim, as partes devem cumprir pontualmente os termos do contrato de fornecimento celebrado.
Se é certo que “o prestador do serviço deve proceder de boa fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger” (art. 3.º da Lei n.º 23/96), tal dever não parece abranger o direito de o utente reduzir, por declaração unilateral, o valor da sua fatura mensal, em especial sendo o motivo um aumento do consumo, ou seja, do fornecimento efetivo do bem.
Não tendo sido aprovadas, até ao momento, normas especiais relativas a esta matéria, aplicáveis a este período concreto que estamos a atravessar, deve aplicar-se o regime geral e, portanto, o utente deve pagar o valor devido nos termos do contrato.
É interessante ter em conta que a ERSE aprovou um Regulamento que estabelece medidas extraordinárias no setor energético por emergência epidemiológica Covid-19, que contém normas muito relevantes quanto à interrupção do fornecimento de eletricidade e gás natural e ao pagamento fracionado da fatura.
Nos termos do art. 2.º-1 do Regulamento, “o fornecimento de energia elétrica e de gás natural em Baixa Tensão Normal e baixa pressão com consumo anual igual ou inferior a 10 000 m3 (n) passa apenas a poder ser interrompido, nos casos de facto imputável ao cliente, volvidos 30 dias adicionais face ao termo regulamentarmente previsto”. Portanto, a um cliente doméstico de eletricidade ou gás natural não pode ser interrompida a prestação do serviço antes de ser concedido um pré-aviso, por escrito, com uma antecedência mínima de 50 dias (os 20 dias atualmente previstos na Lei n.º 23/96, mais os 30 dias de alargamento constantes da norma regulamentar). Este prazo adicional de 30 dias poderá ainda vir a ser prorrogado pela ERSE “em função do evoluir das circunstâncias” (art. 2.º-2 do Regulamento).
O art. 4.º-1 do Regulamento estabelece que “os consumidores fornecidos que, em função da aplicação dos artigos anteriores, gerem dívida aos comercializadores têm direito, mediante pedido, ao pagamento fracionado dos montantes faturados”, sendo que, “pelo período de 30 dias adicionais estabelecido pelo art. 2.º, sem prejuízo de prorrogação que venha a ser decidida pela ERSE, não há lugar à cobrança de juros de mora nos valores faturados a clientes finais”. Os consumidores terão, assim, direito ao pagamento fracionado do valor da fatura, não sendo devidos juros de mora no que respeita aos 30 dias adicionados nos termos do Regulamento.
Nos restantes setores, não identificamos regras específicas excecionais entretanto aprovadas sobre estas matérias.
É interessante notar, no entanto, que o Decreto-Lei n.º 10-D/2020, de 23 de março, estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à epidemia da doença COVID-19 relacionadas com o setor das comunicações eletrónicas. Estas medidas não parecem, no entanto, visar uma proteção, pelo menos direta, do utente-consumidor. Em sentido contrário, salientamos que o art. 8.º-a) e b) estabelece que são suspensas as obrigações de “cumprimento dos parâmetros de qualidade de serviço” e de “cumprimento dos prazos de resposta a reclamações de utilizadores finais, apresentadas através do livro de reclamações em formato físico ou eletrónico”. Ou seja, nestes aspetos, a lei vem desproteger o utente-consumidor nesta fase de resposta à epidemia.