Sr.ª Professora Cristina M. M. Queiroz

I. Conformação jurídico-constitucional 

Foi decretado a 18 de Março de 2020, com entrada em vigor às 0:00 horas do dia 19 de Março de 2020, e pelo período de quinze dias, isto é, até às 23:59 horas do dia 2 de Abril de 2020, o estado de emergência com fundamento na verificação de calamidade pública (1).  


A declaração do estado de emergência foi autorizada no mesmo dia por resolução da Assembleia da República (2). 


No dia 19 de Março de 2020 é publicado no Diário da República, I Série, nº 56/2020, 3ª Suplemento, a Lei nº 1-A/2020, que determina “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e a doença Covid-19”.


A Lei nº 1/2020 tem por objecto, nos seus próprios termos, artigo 1º, proceder à:
a) ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março; e,
b) aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID -19.


Assim:
Em primeiro lugar, o “direito de necessidade”, onde se integra o “estado de emergência”, é um instrumento de “defesa da constituição” e da “ordem pública constitucional”. 


Não constitui, nestes precisos termos, um “direito alternativo” nem um “aliud” jurídico-constitucional. Pelo contrário, a sua decretação obedece a um procedimento constitucional, justamente para que através da sua invocação não se proceda à “destruição” ou “aniquilação” da ordem constitucional. 


Essas “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica”, e que, afirma-se, não poder ser contida pelos meios normais previstos na Constituição e na lei (3), comportam a “suspensão” do exercício de direitos, não na sua globalidade, mas de certos e determinados direitos, que devem ser especificados e claramente determinados na declaração do Presidente da República e resolução de autorização por parte da Assembleia da República, deixando na sua larga maioria intacto o exercício dos direitos civis inerentes à cidadania. 


No caso, os direitos de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional, incluindo a circulação internacional, propriedade e iniciativa económica e privada, direitos dos trabalhadores, incluindo o direito à greve, direito de reunião e de manifestação, direito geral à liberdade de culto, na sua dimensão colectiva, e direito de resistência. 


A decretação do estado de emergência tem por objectivo fazer face a uma situação epidemiológica grave, susceptível de integrar o conceito de calamidade pública. 
O que significa, mesmo no caso do estado de emergência por calamidade pública, que não basta um perigo abstracto, exigindo-se antes uma ameaça concreta, que se dirija contra a existência da República (isto é, todos nós) ou da própria Constituição (ordem constitucional).


Na presente circunstância, devido ao perigo concreto e iminente de contaminação epidemiológica, a declaração do estado de emergência não é parcial, isto é, circunscrita, antes abrange a totalidade do território nacional (4). 


Esse “fim constitucional” (5) mostra-se decisivo na determinação da constitucionalidade das medidas extraordinárias adoptadas. Estas, por sua vez, devem ser objectivas, limitadas ao fim a que se propuseram, estritamente necessárias e proporcionais à ameaça ou perigo de contaminação epidemiológica que as suscitaram (6). 


Mas advirta-se, desde logo: em caso algum as medidas extraordinárias adoptadas podem subverter a ordem constitucional democrática. 


Por isso a declaração do estado de emergência exige sempre o concurso de vários órgãos ― Assembleia da República/Governo/Presidente da República ― e a interdição da suspensão total do exercício de direitos e liberdades fundamentais.


Do ponto de vista procedimental, a declaração do estado de emergência reveste a forma de “decreto” do presidente da República, mas a autorização ou confirmação da declaração pela Assembleia da República assume a “forma de lei” (7).


A execução da declaração do estado de emergência compete ao Governo, que dos respectivos actos deverá manter informados o Presidente da República e a Assembleia da República (8).


As situações de necessidade constitucional pressupõem a possibilidade de restrições mais intensas dos direitos fundamentais do que aquelas que constitucionalmente são admitidas em situações de normalidade. 


Essas situações de necessidade constitucional admitem a suspensão colectiva de direitos, e não individual, rodeada de particulares cautelas e garantias, tendentes a evitar o aproveitamento dessas situações de excepção com a finalidade de se introduzirem medidas abusivas ou excessivas (9).


No que concerne ao funcionamento dos órgãos de soberania, a declaração do estado de emergência não pode afectar as regras constitucionais de competência e funcionamento desses órgãos (10), devendo determinar e especificar o grau de reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e do apoio às mesmas pelas Forças Armadas, sendo caso disso.


Em consequência, o regime constitucional de “suspensão” dos direitos, liberdades e garantias obedece aos seguintes trâmites:
● “proibição absoluta” de suspensão de alguns direitos, liberdades e garantias e de alguns princípios constitucionais (11);  
● exigência de “especificação” dos direitos, liberdades e garantias afectados pela declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (12);
● todos os direitos que não resultem enumerados na declaração do estado de emergência encontram-se “excluídos”, isto é, “fora” das medidas restritivas de excepção;
● “proibição do excesso”, o que significa que se devem observar os princípios da “legitimidade” do fim, “estrita necessidade”, “adequação” dos meios a utilizar e “proporcionalidade em sentido estrito”, isto é, a medida de razoabilidade e equilíbrio entre o peso do fim constitucional invocado face ao peso da suspensão e restrição aos direitos declarados (13);
● “limitação temporal” (14), posto que o regime da suspensão dos direitos, liberdades e garantias não pode prolongar-se por mais de quinze dias, embora se admita a sua renovação por períodos com igual limite (15); 
● subsistência do acesso à “via judiciária”, o que significa proibição da suspensão dos direitos de defesa dos cidadãos, desde logo do direito de acesso à via judiciária (16); 
● os meios de defesa tipificados do Estado de Direito devem prevalecer, incluindo, na sua plenitude, o “direito de acesso à justiça e aos tribunais” para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais (17).  
● e, desde logo, a detenção em caso de desobediência e apresentação no prazo legal ao juiz competente, já que os tribunais comuns se mantêm em funcionamento, bem como a garantia constitucional do “Habeas corpus” (18).  


Por último, o controle parlamentar reveste-se de particular relevância, e não apenas na apreciação do “relatório” a que faz referência o artigo 28º da Lei nº 44/86. 
Antes de mais, a Constituição estabelece a proi-bição da dissolução da Assembleia da República durante a vigência do estado de emergência, sob pena de inexistência jurídica do próprio decreto de dissolução (19). 


À Assembleia da República compete apreciar o desenrolar da aplicação do estado de emergência, e não apenas quando da renovação do mesmo, que só pode ser decretado por um período de quinze dias, sem prejuízo de eventuais renovações com os mesmos limites (20). Essa apreciação estende-se a todo o período da vigência do estado de emergência. 


Na verdade, a constitucionalização do direito de necessidade — tanto quanto nos é possível “normativizar” um estado de “anormalidade” e de “excepção” — implica não a suspensão da Constituição, mas um processo submetido nos seus trâmites à Constituição e aos princípios nela consignados. 


Neste sentido, não é apenas a garantia dos direitos que deve ser preservada, mas também a garantia do funcionamento dos órgãos de soberania, incluindo os tribunais, com as suas competências próprias. 


Daí também a impossibilidade de através da decretação do estado de emergência se proceder a um acto de revisão constitucional, posto que de acordo com o disposto no artigo 289º da Constituição, esse recurso seria considerado passível de “inexistência jurídica”, vício que afecta o desvalor de um acto considerado manifestamente inconstitucional e ilegal. 

II. Apreciação geral


A opção política foi no sentido de não proceder à declaração gradual dos diversos estados previstos na lei de bases da protecção civil, Lei nº 27/2006, de 3 de Julho, artigo 8º/1.


Como consta da Declaração do Estado de Emergência passou-se do estado civil de alerta directamente para o estado de emergência de nível constitucional. O estado civil de contingência e calamidade não chegaram sequer a ser decretados.


Quer dizer, passou-se directamente para a decretação de medidas extraordinárias e de excepção que só devem ser utilizadas em ultima ratio.


E isto no quadro de uma situação epidemiológica grave, declarada pandémica pela Organização Mundial de Saúde, que pode perdurar no tempo. 
Sobre esta matéria não existe conhecimento científico e técnico seguro, certo e verificável. 


O procedimento constitucional foi observado, mas não na sua pureza integral.
E, designadamente, a autorização do estado de emergência por parte da Assembleia da República comporta uma decisão política que pode assumir a forma de resolução, mas a suspensão dos direitos, liberdades e garantias, nos termos constitucionais, tem de assumir a forma de lei (21).


Esses dois momentos, o da decisão e o da suspensão dos direitos, liberdades e garantias, foram desfazados no tempo. 


E aguarda-se, ainda, a decretação de outras medidas por parte do Governo.
A decisão da declaração autorizada do estado de emergência é uma medida extraordinária sem precedentes. E não pode e nem deve perturbar o funcionamento dos poderes de governo no cumprimento do seu fim constitucional.


O problema é que o sistema de saúde, para além de fragmentado, pode carecer de capacidade de resposta eficaz frente à presente crise pandémica. Daí a importância de um serviço nacional de saúde universal que deve estar “fora” das leis do mercado.


Há aqui opções a tomar. Em primeiro lugar a de debelar a crise e proteger os cidadãos. Mas haverá também tensões múltiplas. O Governo terá de fazer escolhas criteriosas e equilibradas, priorizando meios e instrumentos de combate.


A prioridade, de momento, é menorizar tanto quanto possível os efeitos da crise e o avanço da pandemia.


Um alerta também para as fontes de desinformação ou “infodemic” como lhe chamou o New York Times.


O modo e a forma como uma sociedade democrática lida com a pandemia não pode e não deve ser idêntico — incluindo a utilização do aparelho coercitivo do Estado — à de outras sociedades e governos menos democráticos e mesmo não democráticos.


A finalizar, palavras de alento e esperança de um grande jurista, posteriormente Juiz Presidente do Tribunal Supremo Federal nos Estados Unidos, à porta da Convenção de Filadélfia, John Marshall: “United we stand, divided we fall”.

Cumpram as regras sanitárias.
Mantenham-se activos e de boa saúde!
Saudações académicas e cordiais,

Lisboa, 20 de Março de 2020.”

Cristina M. M. Queiroz 

Referências:
1. Cfr., Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, publicada no DR, I, nº 55, 3º Suplemento.
2. Cfr., Resolução nº 15-A/2020, publicada no DR, I, nº 55, 3º Suplemento. 
3. Cfr., artigo 19º/3 e 4 da CRP.
4. Cfr., artigo 19º/2 da CRP.  
5. Cfr., artigo 19º/4 e 8 da CRP.  
6. Cfr., artigo 3º da Lei nº 44/86, de 30 de Setembro. 
7. Cfr., artigo 165º/1/b da CRP e artigos 11º e 15º/1 da Lei nº 44/86.  
8. Cfr., artigo 17º da Lei nº 44/86.  
9. Cfr., artigo 19º da CRP.  
10. Cfr., artigo 19º/7 da CRP.  
11. Cfr., artigos 19º/4 da CRP e 2º da Lei nº 44/86.
12. Cfr., artigos 19º/3 da CRP.
13. Cfr., artigos 19º/4/6/7 da CRP e 3º da Lei nº 44/86.
14. Cfr., artigos 19º/5 da CRP e 5º da Lei nº 44/86.
15. Cfr., artigos 19º/5 da CRP e 5º da Lei nº 44/86.
17. Cfr., artigos 19º/6 da CRP e 6º da Lei nº 44/86.
18. Cfr., artigo 6º da Lei nº 44/86.
19. Cfr., artigos 19/º6 e 7 e 31º da CRP. 
20. Cfr., artigo 172º da CRP.
21. Cfr., artigos 19º/5 e 162º/b da CRP.
22. Cfr., artigo 165º/1/b da CRP e artigos 11º e 15º/1 da Lei nº 44/86.

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